domingo, 11 de dezembro de 2011

A Heresia Anti-litúrgica


A Heresia Anti-litúrgica

Servo de Deus Dom Prosper Louis Paschal Guéranger, OSB
Abade de Solesmes
Extraído de sua obra “Institutions Liturgiques”
(Cap. XIV – Da heresia anti-litúrgica e da Reforma Protestante do séc. XVI,
considerada em sua relação com a liturgia)
1840

Tradução do francês, com consultas ao inglês,
Para se dar uma ideia dos estragos da seita anti-litúrgica, parece-nos necessário resumir a marcha dos pretensos reformadores do cristianismo ao longo de três séculos, e apresentar o conjunto de suas ações e de sua doutrina sobre a purificação do culto divino. Não há espetáculo mais instrutivo e mais apropriado para se fazer compreender as causas da rápida propagação do protestantismo. Certamente aí se verá a obra de uma sabedoria diabólica agindo e levando infalivelmente a vastos resultados.
I. A primeira característica da heresia anti-litúrgica é o ódio pela Tradição nas fórmulas do culto divino. Não se pode negar esta característica especial em todos os hereges, desde Vigilâncio até Calvino, e a razão é fácil de se explicar. Todo sectário, querendo introduzir uma nova doutrina, encontra-se inevitavelmente na presença da Liturgia, que é a tradição em seu mais alto poder, e não consegue encontrar repouso até ter feito calar esta voz, até estarem rasgadas as páginas que contêm a fé dos séculos passados. Com efeito, como se estabeleceram e se mantiveram em meio às massas o luteranismo, o calvinismo e o anglicanismo? Tudo se consumou através da substituição dos livros e fórmulas antigos por livros e fórmulas novos. Nada mais incomodaria os novos doutores; poderiam pregar à vontade: a fé das gentes estava doravante sem defesas. Lutero cumpriu esta doutrina com uma sagacidade digna de nossos jansenistas, dado que no primeiro período de suas inovações, à época em que se via obrigado ainda a guardar uma parte das formas exteriores do culto latino, estabeleceu o seguinte regulamento para a Missa reformada:
Nós aprovamos e conservamos os intróitos dos domingos e das Festas de Jesus Cristo, a saber, da Páscoa, de Pentecostes e de Natal. Nós preferiríamos de bom grado os salmos inteiros de que são tirados estes intróitos, como se fazia outrora, mas queremos bem nos conformar ao uso presente. Nem mesmo culpamos aqueles que desejam reter os intróitos dos Apóstolos, da Virgem e dos outros Santos, desde que estes três intróitos sejam tirados dos Salmos ou de outras passagens da Escritura”.
Ele tinha grande ódio dos cânticos sacros compostos pela própria Igreja para expressão pública da fé. Neles ele sentia pesado o vigor da Tradição que ele desejava banir. Reconhecendo à Igreja o direito de unir sua voz, nas santas assembleias, aos oráculos das Escrituras, ele se exporia a ouvir milhões de bocas a anatematizar os seus novos dogmas. Portanto, ódio a tudo que, na Liturgia, não era exclusivamente extraído das Sagradas Escrituras.
II. Com efeito, é o segundo princípio da seita anti-litúrgica a substituição das fórmulas de estilo eclesiástico pelas leituras da Sagrada Escritura. Ela aí encontra duas vantagens: a primeira, a de fazer calar a voz da Tradição que ela sempre teme; em seguida, um meio de propagar e de apoiar os seus dogmas, pela via da negação ou da afirmação. Pela via da negação, passando em silêncio, através de escolhas astutas, os textos que exprimem a doutrina oposta aos erros que eles querem fazer prevalecer; pela via da afirmação, pondo à luz passagens cortadas que só apresentam um lado da verdade, escondendo o outro dos olhos dos mais simples. Sabe-se, desde muitos séculos, que a preferência dada, por todos os hereges, às Sagradas Escrituras sobre as definições eclesiásticas, não tem outra razão que a facilidade que eles têm de fazer dizer pela Palavra de Deus tudo o que quiserem, apresentando-a segundo o que lhes convém. (...) Quanto aos protestantes, eles quase reduziram a Liturgia inteira à leitura da Escritura, acompanhada de discursos nos quais ela é interpretada pela razão. Quanto à escolha e à determinação dos livros canônicos, acabaram por cair no capricho do reformador, que, como último recurso, decide não somente o sentido da palavra de Deus, mas se esta palavra é verdadeira ou não. Assim, Martinho Lutero conclui, em seu sistema panteísta, que a inutilidade das obras e a suficiência da fé são dogmas a serem estabelecidos e a partir daí declara que a Carta de São Tiago é umacarta de palha, e não uma carta canônica, somente pelo fato de aí se ensinar a necessidade das obras para a salvação. Em todos os tempos e sob todas as formas, funcionará sempre do mesmo jeito: nada de fórmulas eclesiásticas, somente a Escritura, mas interpretada, escolhida e apresentada por aquele ou por aqueles que sabem tirar proveito para a inovação. A armadilha é perigosa para os simples, e somente depois de um longo tempo é que se percebe o engano em que se caiu, e que a palavra de Deus, esta espada de dois gumes, como diz o Apóstolo, abriu grandes feridas, pois foi manuseada pelos filhos da perdição.
III. O terceiro princípio dos hereges acerca da reforma da Liturgia é, digamos, depois de ter expulsado as fórmulas eclesiásticas e proclamado a necessidade absoluta de se empregar apenas as palavras da Escritura no serviço divino, visto que a Escritura nem sempre se dobra, como eles gostariam, a todas as suas vontades, fabricar e introduzir fórmulas novas, cheias de perfídia, pelas quais as pessoas sejam mais solidamente ainda acorrentadas ao erro, e todo o edifício da ímpia reforma venha a se consolidar pelos séculos.
IV. Alguém poderá se admirar da contradição que a heresia apresenta em suas obras, quando vier a saber que o quarto princípio, ou, se assim se desejar, a quarta necessidade imposta aos sectários pela própria natureza de seu estado de revolta, éuma habitual contradição frente aos seus próprios princípios. Deverá ser assim, para a confusão deles, naquele grande dia, que cedo ou tarde vem, quando Deus revelar a nudez deles à vista dos povos que foram por eles seduzidos, e também porque não é da natureza do homem ser coerente, consistente. Somente a verdade pode sê-lo. Por isso, todos os sectários, sem exceção, começam por reivindicar as prerrogativas da antiguidade. Eles querem abstrair o cristianismo de tudo o que o erro e as paixões dos homens nele misturaram de falso ou de indigno de Deus; tudo o que querem é o que é primitivo, e pretendem fazer voltar ao berço a instituição cristã. Para isto, eles podam, cortam e arrancam; tudo cai sob os seus golpes, e quando alguém esperar ver reaparecer em sua pureza primeva o culto divino, encontrar-se-á coberto de fórmulas novas que mal datam de ontem e que são incontestavelmente humanas, posto que aqueles que as redigiram ainda vivem. Toda seita sofreu esta necessidade; vimos isto nos Monofisitas, nos Nestorianos; reencontramos a mesma coisa em todos os ramos do protestantismo. Sua afetação ao pregar a antiguidade é a medida usada para fazer sumir diante de si todo o passado, e assim se põem diante do povo seduzido e lhe juram que tudo está muito bem, que o aparato papista supérfluo foi-se embora, que o culto divino retornou à sua santidade primitiva. Observemos ainda uma coisa característica na mudança da Liturgia por parte dos hereges. É que, em sua sanha inovadora, eles não se contentam em retirar as fórmulas de estilo eclesiástico, que eles menosprezam sob o nome de palavra humana, mas estendem sua rejeição até mesmo às leituras e orações que a Igreja tomou emprestadas da Escritura. Mudam-nas, substituem-nas. Não querem mais rezar com a Igreja. Excomungam, por isso, a si mesmos, e temem assim a menor parcela da ortodoxia que ordenou a escolha daquelas passagens.
V. Sendo a reforma da Liturgia realizada pelos sectários com o mesmo objetivo que a reforma do dogma, de que é consequência, segue-se que, assim como os protestantes se separaram da unidade para crer menos, eles são levados a subtrair do culto todas as cerimônias e todas as fórmulas que exprimem mistérios. Tacharam de superstição e de idolatria tudo o que não lhes pareceu puramente racional, restringindo assim as expressões da fé e obstruindo, pela dúvida e até pela negação, todas as vias que se abrem para o mundo sobrenatural. Por isso, nada mais de sacramentos, a não ser o Batismo, à espera do Socinianismo que o deixaria ao arbítrio de seus adeptos; nada de sacramentais, bênçãos, imagens, relíquias de santos, procissões, peregrinações, etc. Nada também de altar, mas simplesmente uma mesa; nada de sacrifício, como em toda religião, mas simplesmente uma ceia; nada de igreja, mas só um templo, como nos Gregos e Romanos; nada mais de arquitetura religiosa, dado que aí não há mistérios; nada de pintura ou escultura cristãs, dado que aí não há uma religião sensível; enfim, nada de poesia, num culto que não foi fecundado nem pelo amor e nem pela fé.
VI. A supressão das coisas misteriosas na Liturgia protestante produziu infalivelmentea extinção total do espírito de oração que se chama de Unção no Catolicismo. Um coração revoltado não tem amor, e um coração sem amor no máximo poderá gerar expressões de respeito ou de temor, com aquele frio orgulho farisaico. Tal é a Liturgia protestante. Sente-se que aquele que a reza aplaude a si mesmo por não ser contado no número dos cristãos papistas, que trazem Deus até a sua baixeza pela familiaridade de seu linguajar vulgar.
VII. Tratando nobremente com Deus, a liturgia protestante não tem necessidade de intermediários criados. Ela creria faltar com o respeito devido ao Ser soberano ao invocar a intercessão da Santa Virgem, a proteção dos santos. Ela exclui toda esta idolatria papista que roga à criatura aquilo que se deve rogar a Deus somente. Ela remove do calendário todos os nomes dos homens que a Igreja temerariamente inscreveu ao lado do nome de Deus. Ela tem, sobretudo, um horror àqueles monges e outros personagens dos tempos passados que aí se vê figurar ao lado dos veneráveis nomes dos apóstolos que Jesus Cristo escolheu, e pelos quais foi fundada a Igreja primitiva, a única que foi pura na fé e livre de toda superstição no culto e de todo relaxamento na moral.
VIII. Tendo, a reforma litúrgica, como um de seus principais fins a abolição dos atos e fórmulas místicas, segue-se necessariamente que seus autores devam reivindicar o uso da língua vulgar no serviço divino. Por isso, este é um dos pontos mais importantes aos olhos dos sectários. O culto não é algo secreto, dizem; é preciso que o povo entenda o que canta. O ódio à língua latina é inato ao coração de todos os inimigos de Roma. Nela eles vêem o elo entre os católicos de todo o universo, o arsenal da ortodoxia contra todas as sutilezas do espírito das seitas, a arma mais poderosa do Papado. O espírito da revolta que os leva a confiar a oração universal ao idioma de cada povo, de cada província, de cada século, já deu seus frutos, e os reformados estão diariamente a perceber que os povos católicos, não obstante suas orações latinas, têm mais gosto e cumprem com mais zelo os deveres do culto que os povos protestantes. A cada hora do dia, o serviço divino tem lugar nas igrejas católicas; o fiel que aí participa deixa sua língua mãe na porta; com exceção das horas de pregação, ele só ouve os misteriosos acentos [do latim], que até cessam de ressoar no momento mais solene, no Cânon da Missa; e, contudo, este mistério o encanta de tal forma que não inveja a sorte do protestante, embora o ouvido deste último nunca escute um som sem perceber seu significado. Enquanto o Templo Reformado reúne, com grande dificuldade, uma vez por semana, os cristãos puristas, a Igreja Papista vê incessantemente os seus numerosos altares cercados pelos seus filhos religiosos. Cada dia eles deixam seus trabalhos para ouvir as palavras misteriosas que devem ser de Deus, pois elas alimentam a fé e aliviam as dores. Admitamos: é um golpe de mestre do protestantismo o ter declarado guerra à língua sagrada; se conseguir êxito em a destruir, seu triunfo já estará bem avançado. Entregue aos gostos profanos, como uma virgem desonrada, a Liturgia, a partir deste momento, perdeu seu caráter sagrado, e o povo logo achará que não vale a pena deixar os trabalhos ou os prazeres para ir até aí e ouvir alguém falar como qualquer um fala na praça pública. (…)
IX – Tirando da Liturgia o mistério, que rebaixa a razão, o protestantismo tem o cuidado de não esquecer a consequência prática, ou seja, a libertação da fadiga e do desconforto que as práticas da Liturgia Papista impõem ao corpo. Primeiramente, nada mais de jejum e de abstinência; nada de genuflexão para rezar; para o ministro do templo, nada mais de ofícios diários a serem cumpridos, nem mesmo preces canônicas para se recitar em nome da Igreja. Tal é uma das formas principais da grande emancipação protestante: diminuir a quantidade de orações públicas e particulares. O decorrer dos fatos tem mostrado rapidamente que a fé e a caridade, que se alimentam da oração, foram sendo extintas na Reforma, enquanto elas não cessam, entre os católicos, de alimentar todos os atos de devoção a Deus e aos homens, fecundados que são pelas fontes inefáveis da oração litúrgica, realizada pelo clero secular ou regular, ao qual se une a comunidade dos fieis.
X – Como falta ao protestantismo uma regra para discernir entre as instituições papistas quais as que poderiam ser as mais hostis aos seus princípios, foi-lhe preciso cavar até os fundamentos do edifício católico, e encontrar a pedra fundamental que sustenta tudo. Seu instinto fez descobrir tudo que segue este dogma que é inconciliável com toda inovação: o poder Papal. Daí Lutero ter escrito em seu estandarte: “Ódio a Roma e às suas leis”. Ele não fazia nada mais que proclamar uma vez por todas o grande princípio de todos os ramos da seita anti-litúrgica. Daqui vem a necessidade de abrogar em massa o culto e as cerimônias, como idolatria de Roma; a língua latina, o ofício divino, o calendário, o breviário, todas as abominações da grande Prostituta da Babilônia. O Romano Pontífice oprime a razão pelos seus dogmas e os sentidos pelas suas práticas rituais; é preciso proclamar que os dogmas não passam de blasfêmia e erro, e suas observâncias litúrgicas, um meio de assegurar mais fortemente uma dominação usurpada e tirânica. Eis por que, em suas ladainhas emancipadas, a Igreja luterana continua a cantar inocentemente: “Do furor homicida, da calúnia, da ira e da ferocidade do Turco e do Papa, livrai-nos, Senhor”. Cabe aqui recordar as admiráveis considerações de Joseph de Maistre, em seu livro “Sobre o Papa”, onde ele mostra, com tamanha sagacidade e profundidade, que, não obstante as dissonâncias que isolam as diversas seitas separadas umas das outras, há uma característica que reúne todas elas: a de serem não-Romanas. Imaginai uma inovação qualquer, seja em matéria de dogma, seja em matéria de disciplina, e vereis se é possível empreendê-la sem incorrer, queira ou não queira, no apelido de não-Romana, ou se quiserdes, de meio Romana, se falta audácia. Resta saber que tipo de descanso poderá encontrar um católico seja na primeira ou na segunda das duas situações.
XI – A heresia anti-litúrgica, para estabelecer para sempre o seu reinado, tem necessidade de destruir de fato e de princípio todo o sacerdócio no cristianismo, pois ela sente que, onde há um pontífice, há um altar, e aí onde há um altar, há um sacrifício e, portanto, um cerimonial misterioso. Depois de ter abolido a qualidade de Sumo Pontífice, é preciso aniquilar o caráter episcopal, donde emana a mística imposição das mãos que perpetua a hierarquia sagrada. Resulta daí um vasto presbiterianismo, que é exatamente a consequência imediata da supressão do soberano Pontificado. Daí, não há mais um padre propriamente dito. Como a simples eleição, sem uma consagração, fará dele um homem sagrado? A reforma de Lutero e de Calvino não conhecerá outra coisa senão Ministros de Deus, ou dos homens, como se queira. Mas é impossível ficar só nisso. Escolhido e empossado por leigos, portando no templo uma toga de alguma bastarda magistratura, o ministro não passa de um leigo revestido de funções acidentais; não há nada mais que leigos no protestantismo. E assim deve ser, posto que não há mais Liturgia. Bem como não há mais Liturgia, posto que não há nada mais que leigos.
XII – Por fim, no último degrau de embrutecimento, não existindo mais o sacerdócio, dado que a hierarquia está morta, o príncipe, única autoridade possível entre leigos, proclamar-se-á chefe da Religião, e se verá os mais orgulhosos reformadores, depois de ter lançado fora o jugo espiritual de Roma, reconhecerem o soberano temporal como sumo pontífice, e colocarem o poder sobre a Liturgia entre as atribuições de direito majestático. Não mais haverá dogma, moral, sacramentos, culto e cristianismo, a não ser que agrade ao príncipe, dado que o poder absoluto lhe foi entregue sobre a Liturgia, pela qual todas aquelas coisas têm sua expressão e sua aplicação na comunidade de fieis. Tal é, portanto, o axioma fundamental da Reforma, na prática e nos escritos dos doutores protestantes. Este último traço completará o quadro, e permitirá ao próprio leitor julgar sobre a natureza desta pretensa libertação, operada com tanta violência no que tange ao papado, para estabelecer, em seguida, porém necessariamente, uma destrutiva dominação sobre a própria natureza do cristianismo. É verdade que, no começo, a seita anti-litúrgica não tinha o costume de bajular os poderosos: albigenses, valdenses, wycliffitas, hussitas, todos ensinaram que era preciso resistir e mesmo atacar todos os príncipes e magistrados que se encontrassem em estado de pecado, pretendendo que um príncipe perdia o direito no momento em que não estivesse mais na graça de Deus. A razão disso é que os sectários temiam a espada dos príncipes católicos, bispos de fora, tendo tudo a ganhar minando sua autoridade. Mas a partir do momento em que os soberanos, associados à revolta contra a Igreja, quiseram fazer da religião uma coisa nacional, um meio de governo, a Liturgia, bem como o dogma, reduzida aos limites de um país, ficou submetida naturalmente à mais alta autoridade do país, e os reformadores não tinham como deixar de prestar um vivo reconhecimento àqueles que davam, assim, o auxílio de um braço poderoso para estabelecer e conservar suas teorias. É bem verdade que aí há toda uma apostasia nesta preferência dada ao temporal sobre o espiritual, em matéria de religião; mas agem assim pela necessidade de se manter. Precisam não só ser consistentes, mas sobreviver. É por isso que Lutero, que se separou brilhantemente do Pontífice Romano, este considerado como fautor de todas as abominações da Babilônia, não teve vergonha de si mesmo ao declarar teologicamente legítimo um duplo casamento para o landgrave de Hesse, e é por isso também que o Abade Gregório encontrou em seus princípios o meio de associar, de uma vez, a Convenção inteira no voto de execução contra Luís XVI, e de se fazer o defensor de Luís XIV e de José II contra os pontífices romanos.
Tais são as principais máximas da seita anti-litúrgica. De modo algum estão exageradas. Apenas enfatizamos a doutrina centenas de vezes professada nos escritos de Lutero, de Calvino, dos Centuriadores de Magdeburgo, de Hospiniano, de Kemnitz, etc. Estes livros são fáceis de consultar, ou melhor, a obra que resultou daí está sob os olhos de todo o mundo. Cremos ter sido útil pôr à luz estas principais características. Sempre é bom ter conhecimento acerca do que é errado. O conhecimento prático e direto é, às vezes, menos vantajoso e menos fácil.
Cabe aos pensadores católicos tirar a conclusão.

sábado, 5 de novembro de 2011

O uso da mitra e do báculo


O uso da mitra e do báculo



“Caros irmãos e irmãs, hoje trazemos este prático sobre o uso do báculo e da mitra na missa pontifical (ML)”

O uso da Mitra:
A mitra, que será uma só na mesma ação litúrgica, simples ou ornamentada de acordo com a celebração, é habitualmente usada pelo Bispo:
1. Quando está sentado;
2. Quando faz a homilia;
3. Quando faz as sauda­ções,
4. As alocuções e os avisos, a não ser que logo a seguir tenha de tirar a mitra; quando abençoa solenemente o povo; quando executa gestos sacramentais; quando vai às procissões.

O Bispo não usa a mitra:

1. Nas preces introdutórias
2. Nas orações; na Oração Universal
3. Na Oração Eucarística
4. Durante a leitura do Evange­lho
5. Nos hinos, quando estes são cantados de pé
6. Nas procissões em que se leva o Santíssimo Sacramento ou as relíquias da Santa Cruz do Senhor; diante do Santíssimo Sacramento exposto.

O Bispo pode prescindir da mitra e do báculo quando se desloca dum lugar para outro, se o espaço entre os dois for pequeno. Quanto ao uso da mitra na administração dos sacramentos e dos sacramentais, observe-se, além disso, o que adiante vai indicado nos res­pectivos lugares.
(Cerimonial dos bispos, 60)

"O Bispo, ao chegar junto do altar, entrega o báculo ao ministro, depõe a mitra, e faz inclinação profunda ao altar, ao mesmo tempo que os diáconos e os outros ministros que o acompanham.Depois, sobe ao altar e beija-o, juntamente com os diáconos." (Cerimonial dos bispos, 131)

O uso do Báculo:

O Bispo usa o báculo, como sinal do seu múnus pastoral. Aliás, qualquer. Bispo que celebre solenemente o pode usar, com o consentimento do Bispo do lugar. Quando estiverem vários Bispos presentes na mesma celebração, só o Bispo que preside usa o báculo.

Com a parte recurvada voltada para o povo, ou seja, para frente, o Bispo usa habitualmente o báculo na procissão, para ouvir a leitura do Evangelho e fazer a homilia, para receber os votos, as promessas ou a profissão de fé; e finalmente para abençoar as pessoas, salvo se tiver de fazer a imposição das mãos. (Cerimonial dos bispos, 59)

O uso da mitra e do báculo


O uso da mitra e do báculo



“Caros irmãos e irmãs, hoje trazemos este prático sobre o uso do báculo e da mitra na missa pontifical (ML)”

O uso da Mitra:
A mitra, que será uma só na mesma ação litúrgica, simples ou ornamentada de acordo com a celebração, é habitualmente usada pelo Bispo:
1. Quando está sentado;
2. Quando faz a homilia;
3. Quando faz as sauda­ções,
4. As alocuções e os avisos, a não ser que logo a seguir tenha de tirar a mitra; quando abençoa solenemente o povo; quando executa gestos sacramentais; quando vai às procissões.

O Bispo não usa a mitra:

1. Nas preces introdutórias
2. Nas orações; na Oração Universal
3. Na Oração Eucarística
4. Durante a leitura do Evange­lho
5. Nos hinos, quando estes são cantados de pé
6. Nas procissões em que se leva o Santíssimo Sacramento ou as relíquias da Santa Cruz do Senhor; diante do Santíssimo Sacramento exposto.

O Bispo pode prescindir da mitra e do báculo quando se desloca dum lugar para outro, se o espaço entre os dois for pequeno. Quanto ao uso da mitra na administração dos sacramentos e dos sacramentais, observe-se, além disso, o que adiante vai indicado nos res­pectivos lugares.
(Cerimonial dos bispos, 60)

"O Bispo, ao chegar junto do altar, entrega o báculo ao ministro, depõe a mitra, e faz inclinação profunda ao altar, ao mesmo tempo que os diáconos e os outros ministros que o acompanham.Depois, sobe ao altar e beija-o, juntamente com os diáconos." (Cerimonial dos bispos, 131)

O uso do Báculo:

O Bispo usa o báculo, como sinal do seu múnus pastoral. Aliás, qualquer. Bispo que celebre solenemente o pode usar, com o consentimento do Bispo do lugar. Quando estiverem vários Bispos presentes na mesma celebração, só o Bispo que preside usa o báculo.

Com a parte recurvada voltada para o povo, ou seja, para frente, o Bispo usa habitualmente o báculo na procissão, para ouvir a leitura do Evangelho e fazer a homilia, para receber os votos, as promessas ou a profissão de fé; e finalmente para abençoar as pessoas, salvo se tiver de fazer a imposição das mãos. (Cerimonial dos bispos, 59)

sábado, 10 de setembro de 2011

Qual a melhor forma de comungarmos?


Qual a melhor forma de comungarmos?

Caríssimos irmãos e irmãs, hoje trazemos este vídeo sobre a melhor forma de comungarmos.


domingo, 7 de agosto de 2011

É importante que voltemos à piedade Eucarística

“Meus queridos irmãos e irmãs, em Cristo, hoje trazemos uma palestra dada na Canção Nova sobre a necessidade de se voltar a piedade Litúrgica (ML)”
Sabemos que não há Igreja se não houver Eucaristia. Precisamos resgatar a fé da Igreja, a fé na presença Eucarística de Nosso Senhor Jesus Cristo.
É evidente que eu sempre tive muita devoção pela Eucaristia. A ordem de Jesus era para que celebrássemos a Santa Missa, e a verdadeira devoção Eucarística é celebrar a Santa Missa e comungar [o Corpo de Cristo]. Já a Adoração Eucarística é muito legítima, mas foi uma invenção do segundo milênio. Essa prática [Adoração Eucarística] é algo recente, por isso as pessoas acham que ela não é obrigatória. Tenho de confessar que eu, segundo as normas litúrgicas, fiz uma capela no seminário de Cuiabá sem o sacrário; nós o colocamos numa capelinha menor, pois a norma litúrgica diz que o lugar onde se celebra a Eucaristia não deve haver a presença do sacrário.
Valorizando o passado, eu estava muito tranquilo na minha devoção Eucarística, porque celebrava a Missa e comungava, mas devo confessar que quase nunca eu adorava a Jesus Sacramentado. Mas o que mudou na minha vida para que eu mudasse de opinião? Foi o pontificado do Papa Bento XVI. Quando ele foi eleito Papa, duas coisas aconteceram na minha vida. Primeira: ele tomou atitudes que deram um curto-circuito na minha cabeça: começou a insistir na Adoração Eucarística.
Na vigília com o Papa, ocasião do encerramento do Ano Sacerdotal, diante de cerca de 20 mil sacerdotes, Bento XVI expôs o Santíssimo; e nós ficamos ali, de joelhos, rezando. Naquele dia, o Pontífice conseguiu fazer com que milhares de padres colocassem seus joelhos no chão e adorassem a Jesus.
A segunda coisa que mudou em mim com a eleição de Bento XVI é que agora João Paulo II está no céu. Acho que ele conseguiu fazer na minha cabeça o que não conseguiu quando estava vivo. E nós precisamos entender que a Adoração Eucarística é algo urgente. Não é um devocionismo; ela faz parte da própria fé da Igreja.
Papa Bento XVI escreveu a Exortação Apostólica Sacramentum Caritatis - "O sacramento do amor". Nela, ele cita uma frase do bem-aventurado Agostinho, santo no primeiro milênio: “Ninguém coma aquela carne sem que antes tenha adorado. Se não adorar, estará pecando”; ou seja, se você quer comungar, tem de adorar ao Santíssimo Sacramento.
Por que essa prática [Adoração Eucarística] é tão importante? Porque, no primeiro milênio, a Igreja vivia uma fé inabalável. Os cristãos acreditavam na presença de Jesus na Eucaristia. Durante os mil primeiros anos, não havia heresia, todos acreditavam e iam à celebração da Santa Missa. Nela, adoravam e comungavam o Corpo de Cristo. Acontece, porém, que, no segundo milênio, surgiram inúmeras heresias que, somadas, culminaram na heresia protestante, quando Lutero negou a existência de Jesus Cristo na Eucaristia.
Jesus disse: “Tomai todos e comei, esse é o meu corpo. Tomai todos e bebei, esse é o meu sangue”. Deus está presente por imensidade em todos os lugares; no entanto, a presença de Jesus na Eucaristia tem mais consistência, tem mais ser; ela é mais presença, mais ativa.
É impressionante que, justamente na época em que começaram as heresias da Eucaristia, começaram também a surgir os Milagres Eucarísticos. Nós necessitamos urgentemente da Adoração Eucarística; precisamos voltar a dobrar nossos joelhos diante de Deus, a fazer visitas ao Santíssimo Sacramento.
Quando Nossa Senhora apareceu em Fátima, em 13 de maio 1917, ela abriu seus braços e um raio de luz divina inundou o coração de três crianças: Lúcia, Jacinta e Francisco. Elas receberam a graça divina. Instintivamente, prostraram-se diante de Deus e rezaram: “Ó Santíssima Trindade, eu vos adoro, eu vos amo no Santíssimo Sacramento”. Essa oração é a confirmação daquilo que Deus já vinha fazendo no coração daquelas crianças.
Para preparar o coração delas, o Senhor já havia mandado o Anjo da Paz, que se prostrou, reverenciando a Deus; e as crianças também fizeram o memo. Esse ser celeste as ensinou a rezar: “Meu Deus, eu creio, adoro, espero e amo-Vos. Peço-Vos perdão por aqueles que não creem, não adoram, não esperam e não Vos amam”. Nós precisamos repetir essa oração diante do Santíssimo Sacramento.
Em outra aparição, o anjo ensinou aos pequenos: “Santíssima Trindade – Pai, Filho e Espírito Santo –, adoro-Vos profundamente e Vos ofereço o preciosíssimo corpo, sangue, alma e divindade de Jesus Cristo, presente em todos os sacrários da terra em reparação aos ultrajes, sacrilégios e indiferenças com que Ele mesmo é ofendido. E pelos méritos infinitos do Seu Santíssimo Coração e do Coração Imaculado de Maria, peço-Vos a conversão dos pobres pecadores”.
Precisamos pedir perdão a Deus pelas blasfêmias, oferecer nossa adoração em reparação ao Santíssimo Coração de Jesus. Durante a adoração é importante compreendermos o quanto ela está fazendo em nós. É importante que voltemos à piedade Eucarística.
Louvo a Deus pelo Papa Bento XVI que mudou a minha vida, minha visão sobre a Adoração Eucarística. Se não voltarmos a tratar a Eucaristia com toda piedade e adoração que ela merece, perderemos nossa fé em Jesus Eucarístico.

Transcrição e adaptação: Michelle Mimoso

domingo, 31 de julho de 2011

Te Deum

O hino de ação de graças


“Caríssimos irmãos e irmãs, hoje trazemos o belo texto sobre o “Te Deum” hino cantado desde há muito pela Igreja, especialmente na Liturgia das Horas (ML)”

Um ar de triunfo e alegria pairava sobre a cidade de Orléans naquele belo dia de maio de 1429. O estandarte de Santa Joana d'Arc, semeado de flores-de-lis e tendo as figuras de Jesus e Maria, tremulava ao vento, entre brados de júbilo doSanto Agostinho.jpg povo. Repicavam os sinos enquanto pela ponte do rio Loire adentrava a intrépida virgem que reerguera uma França desmoralizada e dividida. Sob as ogivas da Catedral de Sainte-Croix, milhares de vozes entoavam um hino de vitória e ação de graças: o Te Deum.

Da Idade Média até os nossos dias
Ao longo dos séculos, em ocasiões de especial relevância - uma insigne vitória ou algum outro grande dom recebido da Providência -, o povo cristão utilizou-se do Te Deum para manifestar aos Céus sua gratidão. A História registra diversos desses momentos.
Em 20 de janeiro de 1554, por exemplo, quando a cidade de Lisboa exultava pelo nascimento do herdeiro do trono luso, Dom Sebastião, o Desejado, a Igreja uniu-se ao júbilo geral, promovendo solene Te Deum acompanhado do repicar dos sinos. E em 12 de setembro de 1683, após a famosa Batalha de Viena, o rei polonês João Sobieski entrou vitorioso na cidade e cantou com o povo o Te Deum, agradecendo a intervenção da Mãe de Deus, que lhes prestara seu invencível auxílio.
Hoje, as comunidades cristãs do mundo todo se reúnem para entoar solenemente este hino a cada 31 de dezembro, por ocasião das Primeiras Vésperas da Solenidade de Maria Santíssima. Sobre este belo costume, o Papa Bento XVI afirma: Deus "fez-Se como nós, para nos fazer como Ele: filhos no Filho, portanto, homens livres da lei do pecado. Não é este porventura um motivo fundamental para elevar a Deus a nossa ação de graças? Uma ação de graças que não pode deixar de ser ainda mais motivada no final de um ano, considerando os numerosos benefícios e a sua assistência constante que pudemos experimentar no arco dos doze meses transcorridos".1

Hino de louvor e súplica
Cântico de arrebatadora beleza, tanto pela admirável evocação da Igreja triunfante e militante, como pela efusiva proclamação dos atributos e benefícios divinos, possui o Te Deum três partes bem características.
Na primeira, ressalta-se a glorificação da Santíssima Trindade por todos os seres racionais: os Anjos e os Santos prosternam-se em adoração diante desse augusto Mistério. A segunda é uma exaltação de Jesus Cristo, o Verbo Encarnado, o Redentor, que voltará no fim dos tempos como Supremo Juiz para julgar os vivos e os mortos. Por fim, a terceira contém uma veemente súplica: "Fazei-nos ser contados, Senhor Vos suplicamos, em meio a Vossos santos na Vossa eterna glória".
Aqui termina o hino propriamente dito. O que se segue é um apêndice, composto de versículos extraídos de diversos salmos2, acrescentado posteriormente ao texto original.

"Irmão gêmeo" do Gloria
Numerosas analogias relacionam esse hino com outro, o Gloria in excelsis Deo, a ponto de serem chamados de "irmãos gêmeos". E a própria Liturgia, por assim dizer, os associa, pois ambos são habitualmente rezados nos domingos, solenidades e festas: o Gloria na Santa Missa e o Te Deum na Liturgia das Horas (Ofício das Leituras).
Na Idade Média - dado o caráter de humilde súplica dos versículos acrescentados ao texto original - era comum valer-se do Te Deum também para pedir o afastamento de alguma calamidade, enquanto o Gloria in excelsis era cantado apenas nos momentos mais alegres.

Diálogo entre Santo Ambrósio e Santo Agostinho
Há quem atribua a autoria do Te Deum a Santo Hilário, Bispo de Poitiers; a Nicésio, Bispo de Tréveris; a Niceta di Remesiana, e outros mais. Opinam ainda que ele não teve propriamente autor, mas sim compilador que teria recolhido trechos de diversas obras.
Entretanto, uma piedosa tradição atribui sua autoria a dois insignes Padres da Igreja: Santo Ambrósio e Santo Agostinho.
Por volta do ano 384, sendo Santo Ambrósio Bispo de Milão, Agostinho - então com 30 anos - foi para essa cidade a fim de lecionar retórica. O virtuoso Bispo o acolheu paternalmente. "Tu me conduzias a ele sem que eu o soubesse, para que eu fosse por ele conduzido conscientemente a Ti" - escreveria ele depois, impressionado pela bondade com que Ambrósio o tratava.3
Agostinho prestava atenção no conteúdo dos sermões do grande pregador, porém, o que mais o cativava eram a pessoa e as virtudes do homem de Deus. E depois de algum tempo, segundo ele mesmo declarou, "não me era possível separar as duas coisas: enquanto abria o coração às palavras eloquentes, entrava também, pouco a pouco, a verdade que ele pregava".4
Por fim, de tal forma as palavras do santo Bispo pervadiram sua alma, que ele resolveu abandonar o maniqueísmo e se tornar Católico. Graças às lágrimas e insistentes orações de sua mãe, Santa Mônica, aos ensinamentos e ao exemplo de Santo Ambrósio, chegou enfim o dia em que o futuro Doutor da Graça deixaria de ser mera criatura para tornar-se filho de Deus: foi batizado por Santo Ambrósio na noite do Sábado Santo do ano 386, juntamente com seu filho Adeodato e seu amigo Alípio.
Segundo a tradição, durante aquela celebração litúrgica, Ambrósio, num arroubo de fervor, quiçá prevendo quanta glória daria à Igreja aquela alma eleita, proclamou em alta voz:
- Te Deum laudamus: te Dominum confitemur (A Vós, ó Deus, louvamos; a Vós, Senhor, cantamos).
Ao que Agostinho, também ardente de entusiasmo, acrescentou:
- Te æternum Patrem omnis terra veneratur (A Vós, Eterno Pai, adora toda a terra).
E assim, alternando-se num santo e inspirado diálogo, os dois teriam composto o Te Deum. O antigo Breviário Romano lhe dava o título de Hino de Santo Ambrósio e Santo Agostinho. Depois, a versão promulgada por São Pio X o chama de Hino ambrosiano.

Grandes compositores a ele se dedicaram
Como é explicável, ao longo dos séculos, grandes compositores, atraídos pela força e grandeza deste antigo hino, empregaram seu talento em musicar o texto latino. Entre eles encontramos Verdi, Berlioz, Dvorák, Haydn, Mozart e Henry Purcell. Handel chegou a compor três versões, e o "Prelúdio ao Te Deum" de Charpentier é hoje apreciado no mundo inteiro.
No entanto, a melodia mais conhecida é, sem dúvida, a do canto gregoriano, no qual o Te Deum melhor se revela como o hino de ação de graças da Igreja.
Seja entoado por algum grande coral, acompanhado pelo som do órgão, sob a abóboda das catedrais, seja cantado pelo povo fiel em singelas capelinhas, exprime ele a gratidão, o louvor e a súplica ao Deus Eterno: Fiat misericordia tua, Domine, super nos, quemadmodum speravimus in te - Que desça sobre nós, Senhor, a Vossa graça, porque em Vós pusemos a nossa confiança.

terça-feira, 19 de julho de 2011

O mais precioso perfume




"Construirás um altar para queimares sobre ele o incenso", ordenou o Senhor a Moisés, na mesma ocasião em que lhe entregou as Tábuas da Lei. O próprio Deus indicou como deveria ser feita essa mistura de essências odoríferas."

Quem não se rejubila ao ver, nas solenidades litúrgicas, elevarem-se dos turíbulos aquelas ondas que impregnam de suave perfume todo o recinto sagrado? Perfeita imagem da oração que sobe como oblação de agradável odor até o trono de Deus, nas Sagradas Escrituras incenso e prece são apresentados como termos reversíveis um no outro: "Suba direita a minha oração como incenso na tua presença" (Sl 140, 2).
Na mesma linha, lê-se no livro do Apocalipse: "Depois veio outro anjo e parou diante do altar, tendo um turíbulo de ouro. Foram-lhe dados muitos perfumes, a fim de que oferecesse as orações de todos os santos sobre o altar de ouro, que está diante do trono de Deus" (8, 3-4).

Uma história de mais de três mil anos
A utilização dessa essência no culto divino provém de uma prescrição feita pelo Senhor a Moisés, na mesma ocasião em que Este lhe entregou, no Monte Sinai, as Tábuas da Lei. O próprio Deus lhe ditou como deveria ser feito:

"Toma aromas: estoraque, ônix, gálbano de bom cheiro, incenso lucidíssimo, tudo em peso igual. Farás um perfume composto segundo a arte de perfumador, manipulado com cuidado, puro e digníssimo de ser oferecido. E, quando tiveres reduzido tudo a um pó finíssimo, pô-lo-ás diante do tabernáculo do testemunho, no lugar em que eu te aparecer. Este perfume será para vós uma coisa santíssima" (Ex 30, 34-36).

Deus não deixa a menor dúvida de que essa essência odorífera deveria ser usada exclusivamente para o esplendor do culto divino: "Todo homem que fizer uma composição semelhante para gozar de seu cheiro, perecerá no meio do seu povo" (Ex 30,38).
Assim, obedecendo ao que Deus determinou a Moisés, o povo eleito queimou durante vários séculos, pela manhã e pela tarde, em homenagem ao Senhor um incenso de suave fragrância.
No Novo Testamento, ele surge já nos primeiros dias do Menino Jesus. Entrando os Reis Magos na casa onde estava Ele com sua Mãe, prostraram- se e O adoraram, em seguida abriram seus tesouros e lhe ofereceram ouro, incenso e mirra. "O incenso era para Deus, a mirra para o Homem e o ouro para o Rei", diz São Leão Magno (Sermão n. 31). Portanto, dos três dons oferecidos, o de maior valor simbólico era o incenso.

A serviço do esplendor da Liturgia
Devido ao fato de os povos pagãos costumarem queimar todo tipo de perfumes em seus cultos idolátricos, por cautela a Igreja demorou certo tempo em admitir seu uso nas cerimônias litúrgicas.
Logo, porém, que a Liturgia começou a se desenvolver, ele fez seu aparecimento. Assim, nas primeiras décadas do quarto século, o Imperador Constantino ofereceu à Basílica de Latrão dois incensórios, feitos de ouro puro, os quais provavelmente permaneciam fixos em seus lugares e eram usados para perfumar o lugar santo.
O Papa Sérgio I (687-701) mandou dependurar na igreja um grande incensador de ouro para que, "durante as Missas solenes, o incenso e o odor de suavidade se elevassem mais abundantemente para o Deus Onipotente".
Surgiu depois o turíbulo, mas, de início, sua utilização consistia apenas em ser levado pelo subdiácono à frente do cortejo litúrgico, perfumando o percurso do celebrante na entrada e na saída da Missa, e na procissão do Evangelho.
No correr do tempo, com o aperfeiçoamento das celebrações, instituiu-se a incensação no momento do Evangelho, depois no Ofertório e, por fim, no séc. XIII, na elevação da hóstia e do cálice.
Atualmente a incensação durante a Missa é facultativa, podendo ser feita durante a procissão de entrada, no início da Celebração, na proclamação do Evangelho, no Ofertório, e na elevação da hóstia e do cálice após a Consagração (cf. IGrMR, 235).

Efeitos e finalidades
O celebrante põe incenso no turíbulo e o benze com o sinal-da-cruz. Essa bênção faz dele um sacramental, isto é, um "sinal sagrado" mediante o qual, imitando de certo modo os sacramentos, "são significados principalmente efeitos espirituais que se alcançam por súplica da Igreja" (CIC nº 1166).
Um desses efeitos pode ser verificado no motivo da incensação do altar e das oferendas, na Missa. Incensa-se o altar para purificá-lo de qualquer ação diabólica, e as oferendas para torná-las dignas de serem usadas no Mistério Eucarístico.
O incenso é primordialmente um ato de homenagem a Deus, a Nosso Senhor Jesus Cristo, bem como aos homens e objetos consagrados ao culto divino.
Segundo São Tomás de Aquino, a incensação tem duas finalidades. A primeira é fomentar o respeito ao sacramento da Eucaristia, já que ela serve para eliminar, com um perfume agradável, os maus odores que poderiam existir no lugar. A segunda, representar a graça, da qual, como um bom aroma, Cristo estava cheio.
Por fim, o carvão aceso no turíbulo e o perfume que se evola servem também para nos advertir que, se queremos ver nossas orações subirem assim até o trono de Deus, devemos nos esforçar para ter o coração ardente com o fogo da caridade e da devoção.

(Revista Arautos do Evangelho, Junho/2005, n. 42, p. 36-37)

sábado, 25 de junho de 2011

A liturgia e a Palavra de Deus, segundo a Exortação Apostólica Verbum Domini


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O pensamento litúrgico do Cardeal Ratzinger e a crise na liturgia

Ainda quando era Cardeal, o Santo Padre Bento XVI tinha como uma de suas fundamentais preocupações a questão da liturgia. Eleito para o trono de São Pedro, colocou o tema como um dos eixos principais de seu programa de renovação espiritual da Igreja.

De fato, sem a liturgia não há Igreja. É nela que a Igreja ora ao Senhor. Melhor dizendo, é nela que o próprio Cristo ora ao Pai (pelo Ofício Divino), se oferece ao Pai em sacrifício (pela Missa), e comunica aos fiéis o que conquistou diante do Pai (pelos sacramentos). A liturgia é o cerne da Igreja, e o meio pelo qual a Igreja cumpre sua função de salvar as almas.

Ademais, se, pelo Batismo, estamos incorporados a Cristo, a liturgia se torna não só a ação de Cristo, mas nossa unida a Cristo, ou seja, da Igreja toda, Corpo Místico de Cristo. Pio XII, na célebre Mediator Dei, definia a liturgia justamente como “o culto público integral do místico Corpo de Jesus Cristo, isto é, da cabeça e dos seus membros.”

Por essa razão, soa quase como natural a firme atenção de todos os Soberanos Pontífices na defesa das normas que regem o culto, evitando toda imprecisão e falta de zelo em sua celebração, e na incrementação da vida espiritual de clérigos e leigos mediante uma actuosa participatio na liturgia, tal qual foi, aliás, pedido pelo Concílio Vaticano II.

Se tal cuidado foi uma constante em quase todos os pontificados, notadamente os do início do séc. XX, com o chamado “movimento litúrgico” – iniciado por D. Gueranger, OSB, em sua luta contra o galicanismo que pretendia, também no terreno da liturgia, fazer escapar a Igreja das Gálias da autêntica submissão ao papado –, redobrou-se o alerta de Roma sobre o tema a partir das incompreensões advindas de uma má implementação da reforma litúrgica pós-conciliar. Não nos embrenharemos, no presente artigo, pois fugiria ao nosso escopo, discutir a própria reforma de Paulo VI, sua legitimidade ou pontos positivos e negativos. Sem embargo, cumpre notar que, a despeito de qualquer excelente intenção dos reformadores, e mesmo das claras rubricas do Missal Romano adotado, em 1969, pela virtual totalidade da Igreja latina, é notório o caos litúrgico que se instaurou desde então.
É evidente que os experimentos espúrios já vinham desde antes, mas com a crise da autoridade que tomou corpo na sociedade civil desde a revolução sorbonniana de 1968 (“é proibido proibir”), eles se avolumaram dos anos 70 para cá. Paulo VI mesmo confessava sentir que a “fumaça de Satanás entrou no templo de Deus” (Discurso em 29 de junho de 1972), o que, mais tarde, seria explicado pelo Cardeal Noé como uma apreensão diante de tantas manipulações em relação à Missa, tantas desobediências às rubricas, tantos desvios e antropocentrismos, a ponto de certos críticos católicos americanos falarem em “narcisismo clerical”: a liturgia, de serviço do povo a Deus, de culto público da Igreja, havia se transformado, na prática, em espetáculo pessoal na qual cada celebrante põe em andamento uma série de criatividades que considera “pastoralmente melhor”.

Esse o cenário com que se depararam, principalmente, João Paulo II e Bento XVI. O primeiro chegou a demonstrar, por sua grandiosa Encíclica Ecclesia de Eucharistia, que, ao lado de grandes luzes a partir da reforma litúrgica, havia também sombras. Em seu pontificado, para clarear as tais sombras, veio à lume não só uma melhor edição doMissale Romanum, como uma dezena de instruções para melhor aplicar as diretrizes litúrgicas, em que se destaca a direta Redemptionis Sacramentum.

Tal documento, ademais, é de responsabilidade do então Cardeal Ratzinger que, como acenamos, reiteradas vezes evidenciou a centralidade do tema da liturgia em sua monumental obra teológica.

Seu “Introdução ao espírito da liturgia” deixava já bem claras suas intenções como teólogo: era preciso resgatar, como diria mais tarde Mons. Nicola Bux, autor de “La reforma de Benedicto XVI”, os “direitos de Deus” na celebração. A liturgia não é um emaranhado de normas simplesmente positivas feitas por homens, não é um ordenamento puramente racional para que se tenha decência no culto. Mais do que isso, a liturgia é um culto disposto pelo próprio Deus, ainda que muitos de seus detalhes se dêem pela autoridade da Igreja e não diretamente por Revelação. É Cristo mesmo quem celebra a liturgia por meio da Igreja. Nessa seara, pois, todo cuidado é pouco, e toda reverência nunca é demais. Por bem menos do que os atuais abusos litúrgicos, Deus fulminou quem meramente tocava na arca da aliança, simples símbolo de Sua presença, e sombra do grande bem futuro que é a liturgia cristã...

O Magistério do Papa Bento XVI nos temas litúrgicos

Elevado à Sé Romana, o Cardeal Ratzinger assume o nome de Bento, em honra do grande patriarca do monaquismo ocidental, que evangelizou a hoje dessacralizada Europa exatamente pelo amor à celebração litúrgica, a tal ponto em que falar de Ordem beneditina importa em mencionar o canto litúrgico por excelência no rito romano, o canto gregoriano. Assim, Na Missa Pro Ecclesia, encerramento do Conclave que o elegeu, Bento XVI ordenou que essa comemoração fosse marcada “pela solenidade e retidão das celebrações.” Noutras palavras: rigoroso seguimento das rubricas do Missal; cessação de qualquer invencionice por parte dos sacerdotes; decoro e circunspeção; paramentos corretos; proibição de cantos estranhos à tradição católica e de não menos estranhas palmas e demonstrações efusivas de alegria, nada apropriadas para quem assiste, na Missa, a renovação do sacrifício da Cruz. “Peço isso de modo especial aos sacerdotes.”

O Papa tinha suas razões. A casula foi quase abandonada; certos padres inserem numa ou noutra parte da Missa gestos, símbolos (cartazes, plantas, fantasias, fogo etc) e palavras que são criações suas (em total desacordo com as regras vigentes); o povo reza orações reservadas aos sacerdotes e até por eles, às vezes, é incentivado a proferi-las (o “Por Cristo, com Cristo...”, a oração da paz, v.g.); os fiéis são convidados a atos não previstos (fechar os olhos, erguer as mãos, direcioná-las ao altar no “Por Cristo”, abri-las “para receber a bênção”, e outras provas bizarras de inesgotável e anticatólica criatividade, já atacada pelo então Cardeal Ratzinger em seu “A fé em crise?”); nem sempre as músicas são apropriadas; o incenso é raro; e os ministros extraordinários – leigos – são usados na proclamação do Evangelho e, ordinariamente, na distribuição da Comunhão (contrariando a Ecclesiae de Mysterio). Exemplos de um claro desrespeito às normas litúrgicas.

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Não poderia Bento XVI se quedar inerte. Todos os atos de seu pontificado apontam para uma renovação da liturgia, no que alguns têm chamado de “reforma da reforma”: mais do que decretos corrigindo isso ou aquilo, o Papa aposta em uma reeducação litúrgica, em uma melhor vivência do rico patrimônio da liturgia, que, se não pode ficar estático nos livros antigos, também não foi inaugurado pelo Concílio. É a hermenêutica da continuidade, em que não fazem mais sentido as expressões “pré” e “pós-conciliar”: a doutrina e a Igreja são as mesmas, e os documentos devem ser interpretados à luz de uma tradição ininterrupta, também no campo da liturgia.
É com esse pensamento que Bento XVI liberou universalmente a celebração do rito romano antigo da Missa, celebrado anterior à reforma de Paulo VI, tornando-o “forma extraordinária” do rito romano, em pé de igualdade e ao lado do rito reformado, agora “forma ordinária”. Na mente do Papa, ambos devem se enriquecer e favorecer à pax liturgica.
Também é da lavra do atual Papa gloriosamente reinante a Exortação Apostólica Pós-sinodal Sacramentum Caritatis, sobre a Eucaristia, fonte e ápice da vida e da missão da Igreja. Aliás, o tema da caridade é bastante presente nos documentos de Bento XVI:“Deus Caritas Est”“Caritas in Veritate”, e, no caso em tela, “Sacramentum Caritatis”. Escolhendo o tema do amor, da caridade como central em seu Magistério, e unindo a preocupação litúrgica com ele, o Santo Padre parece querer mandar um recado claro: a liturgia, ação de Cristo por nós junto do Pai, mediante a Igreja, é manifestação da Sua caridade para com o mundo. Se não amasse o mundo, não teria se entregue por nós, como nos diz São João em seu Evangelho (cf. Jo 3,16).
Permito-me transcrever, enfim, trechos da monografia apresentada em 2010 pelo Sem. Gian Paulo Rangel Ruzzi, aluno do Seminário Interdiocesano Maria Mater Ecclesia, em Itapecerica da Serra, SP, tendo como orientador o Pe. Celso Nogueira, LC:
“A primeira medida foi tomada em outubro de 2007, quando o prefeito da Congregação para o Culto Divino, o Card. Arinze, escreveu para todas as conferências episcopais do mundo, em concordância com a Instrução do ano 2001 Liturgiam Authenticam, do Card. Estevez, que pedia uma revisão na tradução dos livros litúrgicos, ordenando a correção nas edições em vernáculo da expressão pro multis, muitas vezes traduzida como ‘por todos’.
A segunda ação parte da Congregação para o Clero. Em setembro de 2006 foi erigido o Instituto Bom Pastor, uma sociedade de vida apostólica que celebra a Missa exclusivamente na forma anterior ao Concílio. Depende ao mesmo tempo da Comissão Ecclesia Dei e da Congregação para os Institutos de Vida Consagrada e as Sociedades de Vida Apostólica.
Em março de 2007 o Santo Padre deu a conhecer a Exortação Apostólica pós-Sinodal Sacramentum Caritatis. Nela, o Papa Bento XVI reitera o dever dos sacerdotes em obedecer as “normas litúrgicas na sua integridade, pois é precisamente este modo de celebrar que, há dois mil anos, garante a vida de fé de todos os crentes”. Indica também, na segunda parte do documento, critérios para a ars celebrandi. Recomenda o uso do latim em concelebrações internacionais e a recitação de ao menos algumas partes fixas do cânon neste idioma.
(...)
Ainda em 2007 o Papa promulgou o Moto Próprio Summorum Pontificum, dando liberdade a todo padre para celebrar a missa tridentina sem a prévia permissão do bispo, como era anteriormente acordado. O documento insiste que o missal de Pio V e o missal de Paulo VI são duas expressões de um único Rito Romano, a primeira em sua forma extraordinária e a segunda em sua forma ordinária.” (pp. 26-27)
Não nos espanta, portanto, que um documento que trate não de liturgia, mas da Palavra de Deus na Igreja, como a recente Exortação Apostólica Pós-sinodal Verbum Domini, também seja ocasião para o Romano Pontífice oferecer profunda catequese sobre temas litúrgicos. Como de costume, o Papa nos brinda com densa reflexão sobre a liturgia, ligando-a ao assunto específico do documento.

A liturgia como um locus onde se encontra a Palavra divina

O Papa trata de, a partir do número 52 da citada Exortação Apostólica, especificar a liturgia como um local para encontrar a Palavra. Não apenas a Escritura, dado que não somos protestantes, a ponto de identificar, necessariamente, a Palavra de Deus com um livro em que ela também se exterioriza. A Palavra de Deus, para Bento XVI, é aqui tomada no sentido mais classicamente católico, como o Logos grego, o Verbum latino. Cristo é a Palavra que se encarna, armando sua tenda entre nós, a partir da aceitação da Virgem.
Se a liturgia é a oração pública de Cristo ao Pai pela Igreja, o ato do Corpo Místico, do Cristo total, em nosso benefício, natural que entre ela e o próprio Cristo haja uma correlação imprescindível. Cristo Jesus é a Palavra. A liturgia é ação de Cristo. A liturgia é ação da Palavra. O Filho de Deus se encarna, o Verbo, a Palavra, assume nossa carne, reveste-se de nossa natureza humana, para justamente cultuar ao Pai na Cruz e reviver, de modo incruento, esse sacrifício da Missa, perpetuando seus efeitos pelos sacramentos e, de certa forma, no Ofício Divino. A Palavra de Deus, i.e., o próprio Cristo, é o autor e o ator da liturgia. A liturgia é a ação da Palavra encarnada. E, como tal, Cristo nos fala, como Verbo que é, na liturgia por Ele celebrada mediante seus sacerdotes.
Daí o ensino do Papa na Exortação:
“Considerando a Igreja como «casa da Palavra», deve-se antes de tudo dar atenção à Liturgia sagrada. Esta constitui, efetivamente, o âmbito privilegiado onde Deus nos fala no momento presente da nossa vida: fala hoje ao seu povo, que escuta e responde.” (VD, 52)
Evidentemente, ainda que não se possa identificar a Palavra apenas com a Escritura, é forçoso dizer que esta é um meio concreto e visível de a conhecermos. Encontramos a Cristo no sacrário e no crucifixo, mas também no contato com os Evangelhos e todas as demais páginas da Bíblia Sagrada. Assim, continua o Papa, a “ação litúrgica está, por sua natureza, impregnada da Sagrada Escritura.” (VD, 52)

E não só na chamada “Missa dos Catecúmenos” ou “Liturgia da Palavra” se encontram disposições da Sagrada Escritura. Além das leituras – e um dos pontos positivos da reforma de Paulo VI foi justamente uma maior disposição das lições, com o acréscimo de uma perícope nos Domingos e solenidades (antigamente chamadas de “festas de primeira classe”) –, a Escritura está presente, em citações diretas, também na maioria das antífonas (Intróito, Ofertório e Comunhão), além de se fazer presente, quer na forma direta, quer como inspiração, nas preces, nas coletas, nas sequências, nos prefácios, e até em inúmeros trechos do Ordinário da Missa (como a Consagração, o Rito da Paz, oPater Noster, o Gloria, o Sanctus, o Agnus, as bênçãos solenes).

Isso sem falar na Liturgia das Horas, que bebe entusiasticamente das fontes escriturísticas, com seus salmos, leituras breves e longas, cânticos e também nos hinos que, embora não bíblicos, estão impregnados de uma linguagem lírica comum à Escritura e não raras vezes utilizam-se de expressões consagradas no texto sacro.

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Dado que a Palavra é o Cristo, é Ele, pois, que, na liturgia que Ele mesmo celebra, nos fala, nos ensina, nos satura e penetra com a divina unção da Revelação.

Outro elemento que daí se infere é quanto à interpretação da Revelação divina. A Palavra De Deus só pode ser lida pela Igreja e com a Igreja. Sendo a Igreja a depositária da Revelação, cujas fontes são a Tradição e a Escritura, e tendo também a Igreja nos dado a Bíblia – selecionando o que era ou não inspirado para colocar no cânon –, sendo, por isso, em certo sentido, “mãe da Bíblia”, natural que os textos sagrados só ganhem seu real sentido na própria Igreja. Santo Agostinho já dizia que só cria no Evangelho pela autoridade da Santa Igreja, e outros autores recolhem o adágio de que, fora da interpretação da Igreja, a Bíblia pode ser a mãe de todas as heresias.

Ora, se a Igreja que nos dá a Bíblia, que guarda o depósito da fé pela Palavra divina, é, como Corpo Místico de Cristo, a continuadora da ação do Senhor na história mediante a liturgia, e a mesma liturgia é um locus onde se encontra aquela Palavra, temos que a liturgia é o referencial para a autêntica leitura escriturística. Não é desconhecido, ademais, o adágio “lex orandi, lex credendi”, e sendo a leitura da Palavra de Deus uma forma de oração, com mais razão na liturgia, ela deve expressar o que cremos. De fato, assim se expressa o Papa:
“Por isso, para a compreensão da Palavra de Deus, é necessário entender e viver o valor essencial da acção litúrgica. Em certo sentido, a hermenêutica da fé relativamente à Sagrada Escritura deve ter sempre como ponto de referência a liturgia, onde a Palavra de Deus é celebrada como palavra actual e viva: «A Igreja, na liturgia, segue fielmente o modo de ler e interpretar as Sagradas Escrituras seguido pelo próprio Cristo, quando, a partir do “hoje” do seu evento, exorta a perscrutar todas as Escrituras».” (VD, 52, grifos nossos)
O próprio ano litúrgico, imprimindo um ritmo pelo qual se vai aos poucos se desenrolando o drama da Redenção nas perícopes selecionadas para cada tempo e festa, indica bem a liturgia como lugar da Palavra. E tudo aponta, em tal mencionado ritmo, para o acontecimento central de nossa Salvação.
Isso está bastante claro no mesmo número 52 do documento:
“Aqui se vê também a sábia pedagogia da Igreja que proclama e escuta a Sagrada Escritura seguindo o ritmo do ano litúrgico. Vemos a Palavra de Deus distribuída ao longo do tempo, particularmente na celebração eucarística e na Liturgia das Horas. No centro de tudo, refulge o Mistério Pascal, ao qual se unem todos os mistérios de Cristo e da história da salvação actualizados sacramentalmente: «Com esta recordação dos mistérios da Redenção, a Igreja oferece aos fiéis as riquezas das obras e merecimentos do seu Senhor, a ponto de os tornar como que presentes a todo o tempo, para que os fiéis, em contacto com eles, se encham de graça». Por isso exorto os Pastores da Igreja e os agentes pastorais a fazer com que todos os fiéis sejam educados para saborear o sentido profundo da Palavra de Deus que está distribuída ao longo do ano na liturgia, mostrando os mistérios fundamentais da nossa fé. Também disto depende a correcta abordagem da Sagrada Escritura.” (VD, 52, grifos nossos)
Outros aspectos da relação entre a Escritura e as celebrações litúrgicas

Não podemos olvidar, ademais, segundo o Papa, “que a unidade íntima entre Palavra e Eucaristia está radicada no testemunho da Escritura (cf. Jo 6; L c 24)” (VD, 54).
Prossegue Sua Santidade:
“A este propósito, pensemos no grande discurso de Jesus sobre o pão da vida na sinagoga de Cafarnaum (cf. Jo 6, 22-69), que tem como pano de fundo o confronto entre Moisés e Jesus, entre aquele que falou face a face com Deus (cf. Ex 33, 11) e aquele que revelou Deus (cf. Jo 1, 18). De facto, o discurso sobre o pão evoca o dom de Deus que Moisés obteve para o seu povo com o maná no deserto, que na realidade é a Torah, a Palavra de Deus que faz viver (cf. Sl 119; Pr 9, 5). Em Si mesmo, Jesus torna realidade esta figura antiga: «O pão de Deus é o que desce do Céu e dá a vida ao mundo. (...) Eu sou o pão da vida» (Jo 6, 33.35). Aqui, «a Lei tornou-se Pessoa. Encontrando Jesus, alimentamo-nos por assim dizer do próprio Deus vivo, comemos verdadeiramente o pão do céu». No discurso de Cafarnaum, aprofunda-se o Prólogo de João: se neste o Logos de Deus Se faz carne, naquele a carne faz-Se «pão» dado para a vida do mundo (cf. Jo 6, 51), aludindo assim ao dom que Jesus fará de Si mesmo no mistério da cruz, confirmado pela afirmação acerca do seu sangue dado a «beber» (cf. Jo 6, 53). Assim, no mistério da Eucaristia, mostra-se qual é o verdadeiro maná, o verdadeiro pão do céu: é o Logos de Deus que Se fez carne, que Se entregou a Si mesmo por nós no Mistério Pascal.” (VD, 54)
O reconhecimento do mesmo Logos divino após Sua Ressurreição, pelos discípulos do Emaús, passa por uma demonstração desta relação entre a Palavra/Escritura e a Eucaristia. Os discípulos, diz-nos a própria Escritura – novamente ela –, reconhecem que aquele que lhes falava pelo caminho era o Cristo quando Ele parte o pão, em um símbolo da Eucaristia que instituíra na Quinta-feira Santa. Todavia, a partir desse momento sagrado em que reconhecem o Senhor, lembram-se de que, quando Ele lhes falava (e aqui temos, então, a Palavra, ainda que não-escrita, mas no mesmo nível da escrita, para o entender da Igreja), seus corações ardiam. A Palavra de Deus é que lhes prepara para o reconhecimento de Jesus no partir do pão. E Jesus, recordemos, utilizou, durante todo o caminho com os discípulos, até chegar a Emaús, de trechos da Escritura, para mostrar, pelos profetas e pela lei, como deveria sofrer, morrer e ressuscitar pela salvação dos pecados. A Escritura, então, não só prepara o encontro com o Senhor, mas o justifica. A Palavra – em um tríplice aspecto (o próprio Senhor é a Palavra, suas palavras faladas no caminho, e sua palavra escrita nos profetas e na lei explicando os eventos da salvação) – aponta para a Eucaristia no partir do pão, e a Eucaristia se torna plenamente reconhecível pela Palavra. Há aqui um aspecto teológico profundo até mesmo para a tarefa da apologética com os protestantes, e penso que, em outra oportunidade, deveria ser melhor explorado.

O Santo Padre já adianta a abordagem sobre a relação entre a Palavra e a Eucaristia a partir de Emaús, no ponto seguinte da Exortação:
“Vê-se a partir destas narrações como a própria Escritura leva a descobrir o seu nexo indissolúvel com a Eucaristia. «Por conseguinte, deve-se ter sempre presente que a Palavra de Deus, lida e proclamada na liturgia pela Igreja, conduz, como se de alguma forma se tratasse da sua própria finalidade, ao sacrifício da aliança e ao banquete da graça, ou seja, à Eucaristia». Palavra e Eucaristia correspondem-se tão intimamente que não podem ser compreendidas uma sem a outra: a Palavra de Deus faz-Se carne, sacramentalmente, no evento eucarístico. A Eucaristia abre-nos à inteligência da Sagrada Escritura, como esta, por sua vez, ilumina e explica o Mistério eucarístico. Com efeito, sem o reconhecimento da presença real do Senhor na Eucaristia, permanece incompleta a compreensão da Escritura. Por isso, «à palavra de Deus e ao mistério eucarístico a Igreja tributou e quis e estabeleceu que, sempre e em todo o lugar, se tributasse a mesma veneração embora não o mesmo culto. Movida pelo exemplo do seu fundador, nunca cessou de celebrar o mistério pascal, reunindo-se num mesmo lugar para ler, “em todas as Escrituras, aquilo que Lhe dizia respeito” (L c 24, 27) e actualizar, com o memorial do Senhor e os sacramentos, a obra da salvação».” (VD, 55)
Um ponto “difícil”: a sacramentalidade da Palavra

Segundo os teólogos, a palavra sacramento teve vários significados no início do cristianismo, e podemos resumi-los a três principais:

a) o sentido original e profano de um juramento usado pelos militares romanos;

b) o sentido religioso amplo, designando qualquer coisa que fosse sagrada, ou seja, retirada para uso espiritual;

c) o sentido religioso estrito, importando em um sinal sensível e visível da graça invisível, instituído por Cristo, e por meio do qual a graça operaria eficazmente em nós.

Embora os manuais de dogma, os catecismos e o nosso uso corriqueiro ordinariamente utilizem essa palavra apenas para o sentido estrito, não era estranha à Igreja, ao menos até o Concílio de Trento, a presença do vocábulo “sacramento” no segundo sentido, amplo, lato. Era algo relativamente comum, por exemplo, entre os Padres gregos, ao denominar a árvore da vida do Paraíso, os ícones, as bênçãos, os paramentos, as velas, e até as coroações de reis e imperadores, de sacramentos. Com isso, não se estava, evidentemente, aumentando a lista dos sacramentos além dos sete dogmaticamente reconhecidos. Sabia-se perfeitamente que uns eram os sacramentos como canais da graça, e estes eram apenas sete, como sempre foram e sempre serão; e outros eram simplesmente coisas sagradas a que se aplicava a palavra "sacramento" em um sentido amplo.

Justamente para evitar confusões é que a contra-reforma católica, combatendo os erros protestantes, passou a ressaltar apenas o sentido estrito.

Todavia, o Vaticano II passou a utilizar, novamente, já que quis usar uma linguagem mais agostiniana do que tomista, “sacramento” no sentido amplo. Daí a expressão, tão cara à Lumen Gentium: “Igreja, sacramento da salvação”. Não se está, como resta patente, criando ou reconhecendo um oitavo sacramento que seria a Igreja, até porque não há, na Igreja, uma “celebração”, um “rito”, “forma”, “matéria”... A Igreja não é uma ação ritual, e sim uma sociedade. A Igreja como sacramento não o é no sentido de que é sacramento o Batismo, ou a Crisma, ou a Ordem. Sacramento, para a Lumen Gentium, referindo-se à Igreja é um sinal, algo sagrado, e a Igreja é o “algo sagrado” por excelência, dado que dela ou por ela recebemos o necessário para nos salvarmos, inclusive os sete sacramentos em sentido estrito.

Retomando esse sentido amplo da palavra, Bento XVI, na Verbum Domini, indica a Palavra de Deus escrita e oral como sendo um sacramento. Vejamos, em suas linhas:
“Com o apelo ao carácter performativo da Palavra de Deus na acção sacramental e o aprofundamento da relação entre Palavra e Eucaristia, somos introduzidos num tema significativo, referido durante a Assembleia do Sínodo: a sacramentalidade da Palavra. A este respeito é útil recordar que o Papa João Paulo II já aludira «ao horizonte sacramental da Revelação e, de forma particular, ao sinal eucarístico, onde a união indivisível entre a realidade e o respectivo significado permite identificar a profundidade do mistério». Daqui se compreende que, na origem da sacramentalidade da Palavra de Deus, esteja precisamente o mistério da encarnação: «o Verbo fez-Se carne» (Jo 1, 14), a realidade do mistério revelado oferece-se a nós na «carne» do Filho. A Palavra de Deus torna-se perceptível à fé através do «sinal» de palavras e gestos humanos. A fé reconhece o Verbo de Deus, acolhendo os gestos e as palavras com que Ele mesmo se nos apresenta. Portanto, o horizonte sacramental da revelação indica a modalidade histórico-salvífica com que o Verbo de Deus entra no tempo e no espaço, tornando-Se interlocutor do homem, chamado a acolher na fé o seu dom.” (VD, 56)
Claro está que o Sumo Pontífice não ignora o dogma dos sete (e únicos) sacramentos, nem fere o entendimento da Igreja, apresentando a teologia da “sacramentalidade da Palavra”. A Palavra de Deus, ou mais especificamente, a Sagrada Escritura, não é um sacramento no sentido de uma celebração, de um sinal sensível e eficaz da graça, ou seja, não é sacramento no sentido estrito tomista, tridentino, dos catecismos, e que, claro, deve continuar a prevalecer como “sentido mais forte”, “sentido mais importante”, para que não haja confusão entre os fiéis. Sem embargo, a profunda sacralidade da Palavra não deve ser desprezada, e, além disso, insistindo-se na “sacramentalidade” da Palavra, demonstra-se com bastante eficácia a relação da Escritura com a Eucaristia, como em Emaús.

Noutros termos, os sete sacramentos, em sentido estrito, são revalorizados e diríamos provados pela Palavra como sacramento em sentido amplo. Ou a Palavra, sacramento em sentido amplo, aponta para os sete sacramentos, em sentido estrito. E, se aponta para os sete, com mais razão, para o sacramento do qual derivam os demais, o sacramento por antonomásia, o Santíssimo Sacramento, como se vê na continuação da Exortação Apostólica:
“Assim é possível compreender a sacramentalidade da Palavra através da analogia com a presença real de Cristo sob as espécies do pão e do vinho consagrados. Aproximando-nos do altar e participando no banquete eucarístico, comungamos realmente o corpo e o sangue de Cristo. A proclamação da Palavra de Deus na celebração comporta reconhecer que é o próprio Cristo que Se faz presente e Se dirige a nós para ser acolhido. Referindo-se à atitude que se deve adoptar tanto em relação à Eucaristia como à Palavra de Deus, São Jerónimo afirma: «Lemos as Sagradas Escrituras. Eu penso que o Evangelho é o Corpo de Cristo; penso que as santas Escrituras são o seu ensinamento. E quando Ele fala em “comer a minha carne e beber o meu sangue” (Jo 6, 53), embora estas palavras se possam entender do Mistério [eucarístico], todavia também a palavra da Escritura, o ensinamento de Deus, é verdadeiramente o corpo de Cristo e o seu sangue. Quando vamos receber o Mistério [eucarístico], se cair uma migalha sentimo-nos perdidos. E, quando estamos a escutar a Palavra de Deus e nos é derramada nos ouvidos a Palavra de Deus que é carne de Cristo e seu sangue, se nos distrairmos com outra coisa, não incorremos em grande perigo?». Realmente presente nas espécies do pão e do vinho, Cristo está presente, de modo análogo, também na Palavra proclamada na liturgia. Por isso, aprofundar o sentido da sacramentalidade da Palavra de Deus pode favorecer uma maior compreensão unitária do mistério da revelação em «acções e palavras intimamente relacionadas», sendo de proveito à vida espiritual dos fiéis e à acção pastoral da Igreja.” (VD, 56, grifo nosso)
Um novo mote a considerar. Há, evidentemente, uma indissociável relação entre a Sagrada Eucaristia e a Palavra de Deus, mas para reforçar tal nexo se vale a Igreja de analogias, dado que são "categorias" distintas. Mesmo a presença de Cristo na Escritura proclamada durante a celebração não é do mesmo nível de sua presença real no sacramento eucarístico. A presença de Cristo na Eucaristia é uma presença por antonomásia, por excelência.
Para ressaltar que, pela liturgia, existe uma presença de Cristo na Palavra proclamada, e que ela tem relação com a presença do mesmo Cristo no sacramento da Eucaristia celebrado, novamente, na idêntica liturgia, mas que, por outro lado, tais “presenças” são distintas, é que frisamos o vocábulo “análogo” no parágrafo supra. Cristo está na Palavra e está na Eucaristia, porém entre as duas presenças há uma analogia, significando que não são idênticas, não possuem a mesma substância.

Como já tivemos oportunidade de esclarecer, em outro artigo, publicado pelo conhecido site Veritatis Splendor – http://www.veritatis.com.br/article/3596, que passo a transcrever a título de aprofundamento, como um parêntesis em nosso estudo:
“Importa, antes de tudo, diferenciarmos os modos pelos quais Deus Se faz presente nas coisas, nos lugares e nos seres.
          1) Presença de Cristo em todas as coisas, em todos os lugares, e em todos os seres, por Sua ubiqüidade ou onipresença, i.e., em virtude de seu poder.

        2) Presença de Cristo em todos os homens, pecadores ou justos, pela ubiqüidade, mas também, e de modo mais especial, por amor e por semelhança.

          3) Presença de Cristo nas almas dos justos, i.e., dos que estão em estado de graça ou já se encontram salvos, quer no céu quer no purgatório, pela inabitação, ou seja, mediante a graça santificante.

          4) Presença de Cristo nas páginas das Sagradas Escrituras, nos ministros, em certos sacramentais, nas imagens, no altar, pelo uso que deles se faz.



5) Presença de Cristo na assembléia dos fiéis, pela graça, uma vez que é reunião de almas dos justos e, por isso, decorre da inabitação, presença essa que se chama, mui significativamente, espiritual.





6) Presença de Cristo na Santíssima Eucaristia pela realidade e pela substância, não como se nas outras Ele não estivesse real ou substancialmente presente, mas por antonomásia, de modo excelso.






Feitas essas diferenciações, por alto, passemos à consideração de cada uma dessas maneiras de Deus fazer-Se presente.








“‘Cristo Jesus, aquele que morreu, ou melhor, que ressuscitou, aquele que está à direita de Deus e que intercede por nós’ (Rm 8,34), está presente de múltiplas maneiras em sua Igreja: em sua Palavra, na oração de sua Igreja, ‘lá onde dois ou três estão reunidos em meu nome’ (Mt 18,20), nos pobres, nos doentes, nos presos, nos sacramentos, dos quais ele é o autor, no sacrifício da missa e na pessoa do ministro. Mas 'sobretudo (está presente) sob as espécies eucarísticas.’” (Cat., 1373) 
Em todas as coisas, seres e lugares, faz-Se presente Deus, uma vez que um de Seus atributos é a imensidão ou ubiqüidade, também chamada onipresença.
Embora Deus esteja em sua Sua substância, nela não se convertem as substâncias das coisas onde Ele está presente em virtude de Seu poder. A substância de cada criatura permanece a mesma, não tendo ela substância divina, sob pena de cairmos no erro do panteísmo, que confunde o Criador com os seres criados. 
No ser humano, mesmo pecador, Deus está presente também pela ubiqüidade. Em certo sentido, é a mesma presença divina com a qual o Senhor está em todas as coisas, lugares e seres. Em outro, é uma presença mais íntima, pois o homem é Sua imagem e semelhança. “Tu estavas comigo, mas não eu contigo.” (Santo Agostinho, Conf., X, 27, 38)Ainda assim, esta presença é inferior àquela efetuada por Deus mediante a graça. De fato, a presença de Deus no justo, chamada inabitação, é uma participação na vida divina, na natureza divina. Não muda o homem sua substância, mas participa, pela graça santificante, da de Deus. 
“A pesar del pecado de los hombres, Dios siempre ha mantenido su presencia creacional en las criaturas. Sin ese contacto entitativo, ontológico, permanente, las criaturas hubieran recaído en la nada. León XIII, citando a Santo Tomás, recuerda esta clásica doctrina: «Dios se halla presente a todas las cosas, y está en ellas ‘por potencia, en cuanto se hallan sujetas a su potestad; por presencia, en cuanto todas están abiertas y patentes a sus ojos; por esencia, porque en todas ellas se halla él como causa del ser’» (enc. Divinum illud munus: STh I,8,3). Pero la Revelación nos descubre otro modo por el que Dios está presente a los hombres, la presencia de gracia, por la que establece con ellos una profunda amistad deificante. Toda la obra misericordiosa del Padre celestial, es decir, toda la obra de Jesucristo, se consuma en la comunicación del Espíritu Santo a los creyentes.” (RIVERA, Pe. José; IRABURU, Pe. José María. Síntesis de la Espiritualidad Católica, Fundación Gratis Date) 
“Para melhor entender a natureza e efeitos desse dom, convém recordar o que, depois das Sagradas Escrituras, ensinaram os sagrados doutores, isto é, que Deus se acha presente em todas as coisas e que está nelas ‘por potência, enquanto se acham sujeitas a sua potestade; por presença, enquanto todas estão abertas e patentes a seus olhos; e por essência, porque em todas se acha como causa de seu ser.’ Mas, na criatura racional, encontra-se Deus já de outra maneira, isto é, enquanto é conhecido e amado, já que é segundo a natureza amar o bem, desejá-lo e buscá-lo. Finalmente, Deus, por meio de sua graça, está na alma do justo de forma mais íntima e inefável, como em seu templo; e disso se segue aquele mútuo amor pelo qual a alma está intimamente presente diante de Deus, e está nele mais do que se possa suceder entre os amigos mais queridos, e goza dele com a mais regalada doçura.  
E esta admirável união (...) propriamente se chama inabitação (...).” (Sua Santidade, o Papa Leão XIII. Encíclica Divinum Illud Munus) 
“Trabalhemos sempre vivendo conscientemente Sua inabitação em nós, sendo nós Seu templo, sendo Ele nosso Deus dentro de nós.” (Santo Inácio de Antioquia, Ad Eph., 15,3) A inabitação é formalmente uma união física e amistosa entre Deus e o homem, fundada na caridade e realizada pela graça, mediante a qual Deus Se dá à alma e nela Se torna presente pessoal e substancialmente, sem alteração da substância própria do homem, porém, fazendo-a participar da vida divina. “Deus mora secretamente no seio da alma” (São João da Cruz, Chama, 4, 14) Essa santificação ou divinização não é uma mudança da substância humana em divina, mas elevação da primeira à última. A grande reformadora do Carmelo sempre se referia às “(...) três Pessoas que trago na alma (...).” (Santa Teresa d'Ávila, Consc., 42) 
Santo Tomás de Aquino explica: “O especial modo da presença divina própria da alma racional consiste precisamente em que Deus esteja com ela como o conhecido naquele que o conhece e o como o amado no amante. E porque, conhecendo e amando, a alma racional aplica sua operação ao mesmo Deus, por isso, segundo este modo especial, se diz que Deus não só é na criatura racional, senão que habita nela como em seu templo.” (S. Th., I, q. 43, a. 3) 
Em virtude da Encarnação, Cristo é Deus, mas também homem, duas naturezas em uma só Pessoa. Evidentemente, quando nos referimos à onipresença, estamos falando de um atributo da divindade. Ainda que esta se una indissoluvelmente à humanidade de Cristo em Sua Encarnação, aquela é preexistente. Antes mesmo de tornar-se carne, o Verbo, por ser Deus, já estava em tudo e em todos (sem alterar-lhes, contudo, a substância, nem fazer-lhes participar de Sua natureza divina); na Eucaristia, porém, eis que é Cristo, Verbo feito carne, não só a divindade como a humanidade do Salvador estão presentes. 
Deus não está presente na pedra ou na árvore de modo a fazê-las participar de Sua divindade. Cada ser conserva sua substância própria. A pedra é pedra, não Deus. Sua semelhança com o Criador se dá pela participação da perfeição divina enquanto tem, como Deus, o ser (no caso, o ser pedra). Assim também, o homem não é Deus por estar Este presente naquele; sua natureza humana, substância humana, resta inalterada. É o homem semelhante a Deus apenas na medida em que participa das faculdades da inteligência e da vontade, as quais são perfeições divinas. No homem, Deus está presente, pela ubiqüidade, sendo a ele semelhante, vez que é inteligente e possui vontade (Deus, que é puro espírito, também é inteligente e possui vontade). 
No homem em estado de graça (e nos anjos do céu), Deus faz-Se presente de modo ainda mais excelso: pela participação na natureza divina. Ainda nesta, o homem continua homem (e o anjo, anjo), mas, pela graça, recebe algo da divindade, algo da substância divina, sem alterar a sua própria, contudo. 
Nenhuma dessas presenças, entretanto, é a mesma de Deus na Eucaristia. Nela, Deus não está presente como em todos os lugares, seres e coisas. Nela, Deus não está presente apenas enquanto esta tem o ser. Nela, Deus não está presente pela participação na vontade e na inteligência, que caracterizam a semelhança. Nela, Deus não está presente pela graça ou elevando a substância, a natureza, até Si. Não! Se a pedra, ainda que Deus nela esteja presente, continua pedra, sem mudar a substância de pedra, sem assumir a natureza divina (daí que não adoramos a pedra nem a consideramos Deus, o que seria panteísmo); se o homem não-justificado continua homem, ainda que Deus nele esteja também presente e seja ele criado à Sua imagem e semelhança; se mesmo o homem em estado de graça continua homem, sem mudar sua substância, sua natureza humana (ainda que participando, pela graça santificante, da natureza divina); a Eucaristia é o próprio Deus! Não está Cristo nela como na pedra (que continua pedra) ou no homem (que continua homem, mesmo elevado pela graça à natureza divina), mas há verdadeira mudança de substância (transubstanciação): as substâncias do pão e do vinho, após a consagração e por ela, mudam-se em Corpo, Sangue, Alma e Divindade de Nosso Senhor, Deus, Rei e Salvador, Jesus Cristo. A pedra tem a presença de Deus, porém resta com a substância de pedra. O homem tem a presença de Deus, porém resta com a substância de homem. A Eucaristia tem a substância de Deus, pois nela Cristo não só está presente: a Eucaristia É Deus! Sob a aparência de pão, encontra-se o Criador do Universo! Daí que a adoremos, o que não se faz com uma pedra, ainda que Deus nela esteja presente pela ubiqüidade, nem com um homem, ainda que seja feito à Sua imagem e semelhança e, no caso do homem justificado, participe da natureza divina. 
Cristo, pois faz-Se presente nas coisas, em virtude de sua onipresença; faz-Se presente nos homens pela grandiosa semelhança entre eles e Deus, criados à Sua imagem, com vontade e inteligência; faz-Se presente nas almas justas em razão da graça, presença essa chamada inabitação; faz-Se presente na Bíblia, nos ministros, nos sacramentais, pelo uso; e, muito especialmente, na Eucaristia. “Esta presença chama-se ‘real’ não por exclusão, como se as outras não fossem ‘reais’, mas por antonomásia”, diz Paulo VI, “porque é substancial e porque por ela Cristo, Deus e homem, se torna presente completo”. (Encíclica Mysterium Fidei, de 3 de setembro de 1965, nº 39) A Eucaristia não é apenas presença de Cristo: ela é o próprio Cristo! Ainda que estivesse em todos os lugares, uma vez que, sendo Deus, era onipresente, Cristo, em Sua vida terrena, após a Encarnação, estava, de modo especial, presente em locais específicos: em Cafarnaum, Nazaré, Jerusalém, na manjedoura, nas bodas de Caná, em um barco no mar da Galiléia... A presença de Jesus em um local específico e determinado não elimina Sua ubiqüidade, imensidão, onipresença. O mesmo em relação ao Santíssimo Sacramento: é Deus conosco, e Sua presença nele, específica, não invalida a ubiqüidade. De qualquer maneira, é uma presença excelente, real por antonomásia! 
A presença de Jesus Cristo, outrossim, entre o povo fiel, é explicada de dois modos. Primeiro como conseqüência da inabitação: Cristo está presente, pela graça, nas almas de muitos. Segundo, pela promessa de estar presente no meio deles, como bem lembrou o consulente. É uma presença, ainda que real, que se dá de maneira espiritual. A substância do lugar não muda.”
Não se distorça, portanto, a Exortação do Papa para justificar espúrias teologias que tentam igualar a Escritura e a Eucaristia, reduzindo, na prática, a fé na presença real e substancial do Senhor no Santíssimo Sacramento.
Fecha parênteses. Sigamos o artigo.

Pontos práticos para a “reforma da reforma litúrgica” em relação à Palavra de Deus

Enfim, não se pode descurar toda a questão que falávamos no início deste artigo, sobre a “reforma da reforma” pretendida e iniciada por Bento XVI, e suas relações com o tema da presente Exortação Apostólica. E é nesse sentido que o próprio Papa já se adianta e, não querendo deixar somente para nossa criatividade e filosofia imaginar o cenário de como a Palavra de Deus se afina com o resgate de uma sacralidade mais “ostensiva” na liturgia, dá os caminhos por onde, com segurança, poderemos trilhar nos próximos anos, principalmente os envolvidos no “novo movimento litúrgico”, como nós, aqui em nosso blog.

O Papa já tinha, em 2006, em sua Mensagem para o Dia Mundial da Juventude, especificado a importância que dava à intimidade com a Escritura, tema da presente Exortação. O despertar para a liturgia, requerido por Bento XVI, passa por um contato mais estreito com a Palavra de Deus, que, como vimos, permeia não só a celebração litúrgica, como é a base da teologia que a sustenta.

Nesse diapasão, convém recordar as palavras do Pontífice àquela ocasião:
“Diletos jovens, exorto-vos a adquirir familiaridade com a Bíblia, a conservá-la ao alcance da mão, a fim de que seja para vós uma bússola que indique o caminho a seguir. Lendo-a, aprendereis a conhecer Cristo. A este propósito, São Jerônimo observa: "A ignorância das Escrituras é ignorância de Cristo" (PL 24, 17; cf. Dei Verbum, 25). Um caminho bem experimentado para aprofundar e saborear a palavra de Deus é a lectio divina, que constitui um verdadeiro e próprio itinerário espiritual por etapas. Da lectio, que consiste em ler e reler um trecho da Sagrada Escritura e em frisar os seus aspectos principais, passa-se à meditatio, que é como que uma pausa interior, em que a alma se dirige a Deus, procurando compreender aquilo que a sua palavra diz hoje à vida concreta. Depois, vem a oratio, que nos faz entreter com Deus um diálogo directo, e enfim chega-se à presença de Cristo, cuja palavra é "luz que brilha num lugar escuro, até que venha o dia em que a estrela da manhã brilhe nos vossos corações" (2 Pd 1, 19). Em seguida, a leitura, o estudo e a meditação da Palavra devem desabrochar numa vida de adesão coerente a Cristo e aos seus ensinamentos.” (Mensagem em 22 de fevereiro de 2006)
A partir dessas linhas-mestras, o Papa sugere um programa muito prático para a valorização desse nexo entre a Sagrada Eucaristia e a ação litúrgica.

Um dos pontos desse programa é a formação dos que fazem leituras na Missa, e a redescoberta e promoção do ministério do leitor.
“Na assembleia sinodal sobre a Eucaristia, já se tinha pedido maior cuidado com a proclamação da Palavra de Deus. Como é sabido, enquanto o Evangelho é proclamado pelo sacerdote ou pelo diácono, a primeira e a segunda leitura na tradição latina são proclamadas pelo leitor encarregado, homem ou mulher. Quero aqui fazer-me eco dos Padres sinodais que sublinharam, também naquela circunstância, a necessidade de cuidar, com uma adequada formação, o exercício da função de leitor na celebração litúrgica e de modo particular o ministério do leitorado que enquanto tal, no rito latino, é ministério laical. É necessário que os leitores encarregados de tal serviço, ainda que não tenham recebido a instituição no mesmo, sejam verdadeiramente idóneos e preparados com empenho. Tal preparação deve ser não apenas bíblica e litúrgica mas também técnica: «A formação bíblica deve levar os leitores a saberem enquadrar as leituras no seu contexto e a identificarem o centro do anúncio revelado à luz da fé. A formação litúrgica deve comunicar aos leitores uma certa facilidade em perceber o sentido e a estrutura da liturgia da Palavra e os motivos da relação entre a liturgia da Palavra e a liturgia eucarística. A preparação técnica deve tornar os leitores cada vez mais idóneos na arte de lerem em público tanto com a simples voz natural, como com a ajuda dos instrumentos modernos de amplificação sonora».” (VD, 58)
A leitura das lições na Missa em rito romano, à exceção do Evangelho, é feita por alguém especialmente encarregado para tal. O Papa trata de sublinhar o necessário preparo técnico, mas também espiritual, de quem faz essas leituras. Não se pode apenas emprestar a voz à Palavra de Deus para fazer uma proclamação litúrgica: é preciso que tal seja fruto da coerência de vida, sem descuidar o aspecto técnico.

Além disso, o Santo Padre, ao prescrever tais conselhos a todos os que fazem leituras, diz que eles são ainda mais importantes quando elas são feitas pelos “leitores instituídos”. O leitorado, bem o sabemos, é um ministério, ou seja, uma tarefa especialmente dada pela autoridade da Igreja a alguém mediante um rito litúrgico específico. Hoje, esse rito, no âmbito da liturgia romana moderna, se chama instituição, mas houve tempo em que se a chamava “ordenação menor”, expressão que é conservada pelos que observam a forma antiga, extraordinária, do rito romano, e pelos inúmeros ritos orientais. Assim, historicamente, esse ministério do leitor era tão importante a ponto de o chamarmos “ordem menor”, em analogia ao sacramento da Ordem.

Se leituras todos podem fazer, homens e mulheres, desde que idôneos e bem preparados, o ministério do leitor, por sua vez, só é concedido aos homens pelo Bispo, nos termos do Direito Canônico.

Urge valorizá-lo. Não conferir tal ministério/ordem menor somente aos seminaristas em preparação ao sacerdócio, mas a varões que tenham o chamado específico. Se em uma Missa “comum”, se possa, sem maiores problemas, treinar um leigo para fazer uma leitura, tem maior peso litúrgico, e é mais conectado com a tradição, que nas Missas mais solenes, a leitura seja feita pelo leitor instituído, i.e., por quem recebeu o ministério do leitorado. Entre um simples fiel que faz uma leitura e um leitor instituído há um abismo enorme a diferenciá-lo, e esse abismo é saudável, encontra eco na tradição litúrgica, e faz a Palavra por ele proclamada ter uma significação litúrgica externa muito mais profunda.

Outro ponto ressaltado pelo Pontífice para enfatizar a posição litúrgica da Palavra de Deus na celebração é a maior popularização do canto por excelência do rito romano, o canto gregoriano. De fato, além de musicar as perícopes bíblicas ou, quando não o faça, se inspirar profundamente nas mesmas, o canto gregoriano, por sua métrica e técnica, subordina a melodia à palavra cantada. O centro, no canto gregoriano, é o que se canta, e não tanto como se canta.
“No âmbito da valorização da Palavra de Deus durante a celebração litúrgica, tenha-se presente também o canto nos momentos previstos pelo próprio rito, favorecendo o canto de clara inspiração bíblica capaz de exprimir a beleza da Palavra divina por meio de um harmonioso acordo entre as palavras e a música. Neste sentido, é bom valorizar aqueles cânticos que a tradição da Igreja nos legou e que respeitam este critério; penso particularmente na importância do canto gregoriano.” (VD, 70)
Falar em canto gregoriano, por sua vez, nos leva a falar no silêncio. O modo de cantar a música oficial da liturgia romana é uma lembrança da importância de silenciar para ouvir a Deus.

Também na liturgia esse silêncio tem seu lugar. Não se adora a Deus apenas falando, cantando, recitando uma oração. Silenciando também prestamos culto ao Senhor, e respondemos ao apelo do que foi lido nas Sagradas Escrituras. Por isso, o silêncio é um ponto muito concreto para valorizar a Palavra de Deus na liturgia.
“Várias intervenções dos Padres sinodais insistiram sobre o valor do silêncio para a recepção da Palavra de Deus na vida dos fiéis. De facto, a palavra pode ser pronunciada e ouvida apenas no silêncio, exterior e interior. O nosso tempo não favorece o recolhimento e, às vezes, fica-se com a impressão de ter medo de se separar, por um só momento, dos instrumentos de comunicação de massa. Por isso, hoje é necessário educar o Povo de Deus para o valor do silêncio. Redescobrir a centralidade da Palavra de Deus na vida da Igreja significa também redescobrir o sentido do recolhimento e da tranquilidade interior. A grande tradição patrística ensina-nos que os mistérios de Cristo estão ligados ao silêncio e só nele é que a Palavra pode encontrar morada em nós, como aconteceu em Maria, mulher indivisivelmente da Palavra e do silêncio. As nossas liturgias devem facilitar esta escuta autêntica: Verbo crescente, verba deficiunt.
Que este valor brilhe particularmente na Liturgia da Palavra, que «deve ser celebrada de modo a favorecer a meditação». O silêncio, quando previsto, deve ser considerado «como parte da celebração». Por isso, exorto os Pastores a estimularem os momentos de recolhimento, nos quais, com a ajuda do Espírito Santo, a Palavra de Deus é acolhida no coração.” (VD, 66)
Ao contrário do que se poderia pensar, mais superficialmente, a promoção da Palavra no culto litúrgico não é feita somente quando se a proclama ou quando se a escuta, mas também quando se a digere e contempla. De nada adianta ouvir a Palavra, sem meditá-la, e só se medita quando se está em silêncio. O silenciar, por alguns instantes, na Missa, não é ocasião de tédio ou vazio, mas de sublime contemplação da Palavra de Deus liturgicamente anunciada.

Enfim, nos números seguintes da Exortação, Bento XVI enumera outras sugestões para que o culto litúrgico demonstre mais claramente sua relação com a Sagrada Escritura: a importância da explicação das leituras por uma atenta homilia (cf. VD, 59); a promoção das Laudes e Vésperas celebradas com o povo nas paróquias (de forma comunitária e, se houver condições, também na forma solene, conforme o Cerimonial dos Bispos, com pluvial, incenso, canto gregoriano; cf. VD, 62); o uso do Evangeliário, conduzido com especial dignidade nas procissões, não só na Missa pontifical, mas em outras Missas mais importantes, especialmente na Missa solene com diácono (cf. VD, 67); e a observação do ambão como um lugar de honra no presbitério, bem como do cuidado com o Lecionário (cf. VD, 57 e 68).

Não pretendemos terminar o presente artigo de forma abrupta. Sem embargo, após explanarmos – certamente sem ambicionar fornecer uma interpretação exaustiva dos trechos sobre liturgia na citada Exortação Apostólica Verbum Domini, antes dando uma pincelada em pontos que julgamos mais relevantes –, após explanarmos, dizíamos, sobre o nexo entre a Sagrada Escritura e o culto público da Igreja, não nos restaria senão recomendarmos a leitura direta do texto do documento, como forma de aproximação com o riquíssimo pensamento litúrgico do Papa Bento XVI. Pensamento, aliás, iniciado já antes, no seu tempo de padre, teólogo, Bispo e Cardeal da Santa Igreja Romana.

Para “salvar” a liturgia diante de tantas sombras e manipulações, fato denunciado por grandes Bispos e por três Papas (Paulo VI, João Paulo II e o próprio Bento XVI), temos que andar no passo da Igreja. No afã de promover um novo movimento litúrgico, que desperte nas almas a busca mais profunda de Deus mediante a oração oficial da Igreja, e uma compreensão das rubricas e dos ritos como instrumentos para a nossa santificação, nada é melhor do que trilhar o caminho que o Sucessor de Pedro nos indica. Responder ao chamado do Papa, obedecer ao que ele manda, e manifestar, assim, nossa mais sincera fidelidade ao seu Magistério, passa por escutar seu apelo em prol da liturgia.

Oxalá a leitura atenta deste despretensioso artigo leve o amigo a isso. Da Palavra à liturgia, da liturgia à Palavra, e de ambas à maior glória de Deus, à dilatação da Igreja, e à salvação das almas, começando pela nossa...